O treinador e as imprevisibilidades e transições no Voleibol
Na busca da eficácia de equipes e atletas, as particularidades da modalidade e as características de suas exigências, devem estar sempre presentes em todo o planejamento de ações do treinamento. Somente treinadores que possuam conhecimento sobre as demandas cognitivas e motoras exigidas pela dinâmica da prática do voleibol, é que conseguem formar, treinar e dirigir atletas e equipes para a prática de alto nível.
A fim de contextualizar as intervenções necessárias, além de citar que cada equipe tem, em cada uma de suas ações, o direito de realizar no máximo três contatos na bola antes de enviá-la para o campo do adversário, e que a bola não pode ser retida ou conduzida pelos praticantes, é necessário lembrar que se trata de um esporte de não invasão.
Devido à rede, no voleibol os atletas não invadem o espaço de jogo da equipe oponente para a obtenção de pontos e não têm a sua parte da quadra invadida pelos adversários nas suas ações defensivas. Portanto, para que se possa vencer os adversários, os melhores instrumentos são aqueles ligados a preparação de estratégias inteligentes de ataque e defesa, executadas com técnicas perfeitas e adaptadas a cada situação criada pelo jogo. Os aspectos cognitivos alicerçam as ações dos atletas de voleibol.
As particularidades acima descritas remetem a outras. O primeiro contato na bola em cada ação de uma equipe, é quase sempre defensivo, ou seja, trata-se de uma recepção de saque, de uma “bola enviada de presente”, ou da defesa de um ataque adversário. No instante da ação defensiva inicia-se a transição para a ofensiva, fato que dá ao voleibol uma dinâmica que lhe é peculiar. A intervenção defensiva já é o início da ofensiva e estimula os processos de transição de ambas as equipes envolvidas. A equipe que atacou tem que se preparar imediatamente para suas ações táticas defensivas e a que defendeu, para suas ofensivas.
As transições no voleibol implicam que as ações individuais estejam subordinadas às coletivas para que os planos táticos de cada equipe sejam contemplados. A variabilidade do jogar voleibol solicita que os atletas se adequem a cada nova situação, através de suas capacidades e competências, de acordo com as táticas individuais e as possíveis flexibilizações do emprego das técnicas exigidas por elas.
Como já foi mencionado anteriormente, existem basicamente dois momentos de transição no voleibol: da defesa para o ataque e do ataque para a defesa. No primeiro caso, a equipe realiza a defesa, prepara o contra-ataque enviando a bola para o levantador que acionará um de seus atacantes. Simultaneamente, esta equipe realiza a cobertura de ataque para evitar um possível sucesso do bloqueio adversário. Uma vez que o ataque seja defendido pela equipe adversária, inicia-se uma nova transição do time que acaba de atacar. Partindo do posicionamento feito para a cobertura ao ataque realizado, os seus atletas deslocam-se para os seus respectivos posicionamentos defensivos. Os atacantes para bloquearem e os que se encontram no fundo de quadra, para as posições 1, 6 e 5, para se prepararem para as suas participações no jogo de campo.
Para Magill (2000) quando uma tarefa é composta de várias partes para ser executada, como é o caso das transições que ocorrem no voleibol, configura-se a COMPLEXIDADE DA TAREFA. O sequenciamento das intervenções que cada atleta executa, trará uma série de solicitações de processamento de informações, portanto muita atenção, para que suas tomadas de decisão e ações sejam realizadas com eficácia.
No mundo do voleibol as sequências que lhe são inerentes são tratadas por COMPLEXOS. Seguindo estudos apresentados pelo saudoso Professor Célio Cordeiro, fundador da CONAT (Comissão Nacional de Treinadores da CBV), esta entidade tem utilizado, para estudar as sequências complexas que ocorrem no voleibol, os termos K1, K2 e K3.
No K1 (Complexo 1) inserem-se a recepção do saque, o levantamento, o ataque e a cobertura desse ataque. No K2 (Complexo 2) estão o saque, o bloqueio, a defesa de campo e todo o contra-ataque, inclusive com a proteção ao ataque. Já no K3 temos os mesmos fundamentos do K2, mas com o envio da bola para o campo do adversário feito através de um ataque ou de uma bola de graça (free ball) e não via saque.
Temos, então, que a passagem de um complexo para outro implica nas transições, que permitem às equipes possuírem volume de jogo, quando as realizam com qualidade e frequência.
O voleibol é composto essencialmente por habilidades motoras abertas, pois suas ações são condicionadas à variabilidade de estímulos do ambiente criado por cada situação do jogo. Durante o sequenciar das ações, as informações que deverão ser captadas, processadas e transformadas em respostas motoras precisas por cada atleta, virão das ações dos adversários, e dos seus próprios companheiros de equipe. Isso exige por parte dos praticantes, constantes adaptações nas ações que compõem a complexidade das tarefas.
Como a bola é o principal instrumento estimulador das ações, é ela que na verdade, desencadeará as intervenções de todos os envolvidos na disputa. Ela, a cada lance, exigirá uma percepção e uma análise da situação, uma solução mental do problema, para que o atleta finalmente realize uma solução motora (Matias e Greco, 2010). O que torna o jogo constantemente desafiador para cada atleta, consequentemente para as equipes, é que a bola nunca está no mesmo lugar, na mesma altura, na mesma distância da rede, na mesma velocidade e não possuiu sempre a mesma característica de em suas trajetórias de deslocamentos no ar.
As intervenções dos atletas alteram constantemente o movimento e localização da bola e, consequentemente, de todos os participantes de cada lance, o que exige por parte deles muita atenção, percepção e tomadas de decisão em instantes muito curtos, considerando não apenas a bola, mas também os movimentos de seus companheiros de equipe e dos adversários, e de todo o contexto do rali.
As reflexões, até aqui realizadas, nos levam às preocupações que devem nortear as metodologias de treinos de um técnico, bem como as suas relações com seus atletas durante os treinos e as partidas. Para tanto é importante lembrar os ensinamentos de Tani e Corrêa (2016), que nos mostram que não existem dois movimentos iguais, por mais semelhantes que suas execuções possam parecer. Aspectos coordenativos ligados à imprevisibilidade, variabilidade de cada situação e a busca de soluções fazem com que eles sejam diferentes. Os autores nos mostram que quanto mais o repertório motor do atleta for amplo, diversificado e flexível, maiores as suas chances de dar respostas adequadas às suas percepções desencadeadas a cada situação problema do jogo.
No voleibol os aspectos já citados são muito determinantes, pois a execução de uma técnica está subordinada à interação com o contexto e com a dinâmica da bola. Portanto, um treinador deve treinar a aplicação das técnicas específicas do voleibol dentro da variabilidade e da complexidade necessárias em cada momento (K1, K2 e K3), e considerar as transições entre eles, para que os atletas treinem e estejam preparados cognitivamente para, não só tomarem as decisões que julguem adequadas, como também, realizarem os ajustes das técnicas para que tenham sucesso.
O treinador precisa adequar bem as atividades programadas em seus treinamentos para que elas estejam adequadas tanto aos seus planos táticos, como à capacidade de performance de seus comandados. Os exercícios devem ser desafiadores, mas realizáveis!
Os treinamentos procuram basicamente atingir aos propósitos de, além de bem preparar a equipe para os jogos, garantir que os atletas estejam preparados para eles. Entretanto para que os treinos tenham realmente sucesso, eles necessitam contemplar os ensinamentos de Bernstein (1967), citado por Go Tani (2016):
“Prática significa a repetição do processo de solucionar problemas motores, e não a repetição do meio de solucioná-los”.
O referido autor também quer dizer que isso, na prática, significa a repetição sem repetição! O treinador deve sempre criar situações novas para que a cognição de seus atletas seja estimulada e desafiada. Somente dessa maneira o atleta se tornará apto para a compreensão e solução das situações-problema criadas no jogar voleibol.
O treinador de voleibol tem as orientações e correções como alguns de seus principais instrumentos de trabalho. As correções relativas a possíveis imperfeições quanto a execuções da técnica padrão esperada, pode ser feita através de orientações verbais ou demonstrativas, conhecidas por CONHECIMENTO DE RESULTADO. É esperado que o atleta ao receber um feedback sobre o resultado do movimento, consiga adequá-lo às orientações recebidas. Essa estratégia deve ser feita de maneira bem individualizada, pois cada atleta tem a sua própria vivência motora e sua capacitação. Portanto, ela não funcionará sempre em todas as situações, e nem da mesma forma para todos os atletas.
Nos treinos a correção também pode ser feita através da realização de exercícios, para que a execução do padrão esperado da técnica seja alcançada. Cria-se a oportunidade para que o praticante possa vivenciar, mentalizar e registar a forma desejada da execução.
Já as correções, inerentes às ações dentro da complexidade própria da dinâmica do jogo, tanto em treinos como nos jogos, exigem do treinador muita atenção e conhecimento do voleibol. Ele também precisa ter ciência de como devem se comportar seus atletas dentro da variabilidade criada no transcorrer das partidas. Para obter sucesso ao orientar ou corrigir seus atletas, o treinador precisa detectar se o problema ocorreu na fase da percepção, da tomada de decisão ou execução da ação.
Portanto, para que os atletas se sintam confiantes nas orientações feitas por seus treinadores, há a necessidade de que orientações partam de quem lhes demonstre com precisão as suas necessidades, e por quem eles respeitem e reconheçam como um treinador competente.
Quando o resultado de uma tomada de decisão não obteve a eficácia desejada, o atleta tem ciência de que errou, portanto, não há a necessidade de que o treinador diga que ele não acertou, mas sim indicar a razão da performance inadequada e como corrigi-la.
Para finalizar, lembramos que o voleibol é um esporte de habilidades motoras abertas, que são aplicadas e organizadas em sequências complexas, limitadas pela variabilidade de cada situação. Cabe ao treinador preparar suas equipes para que as imprevisibilidades inerentes ao jogo sejam de menor impacto nos seus atletas. Para tanto, repetimos: torna-se importante que as performances cognitivas sejam cotidianamente estimuladas e enriquecidas.
Referências
Tani G. Comportamento motor: aprendizagem e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,2005.
Tani G, Bento JO, Petersen RDS. Pedagogia do desporto. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006.
Magill RA. Aprendizagem motora: conceitos e aplicações. São Paulo: Blücher, 2000.
Tani G, Corrêa UC. Aprendizagem motora e o ensino do esporte. São Paulo: Blücher, 2016.
Matias CJ, Greco PJ. Cognição e ação nos jogos esportivos coletivos. Ciências & Cognição, v. 15, n. 1, p. 252-271, 2010.